Comunicado de Imprensa
Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
31 de Agosto de 2021
No dia 1 de setembro fará um ano desde que a app de rastreio de contactos Stayaway Covid foi lançada. Para assinalar a data, a D3 divulga agora o Relatório Público Stayaway, uma análise extensa de todo o ciclo de vida da app, o que correu mal e o que podemos fazer melhor da próxima.
Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3 e coordenador do esforço, apresenta as motivações: “Quando alguns ainda insistem em abanar o cadáver e alegar que está de boa saúde, sentimos que é bem altura de realizar a autópsia. Como ninguém o fez ainda, metemos mãos à obra. Este documento é o resultado de mais de um ano de trabalho a reunir estudos, dados e notas de imprensa, analisá-los e tirar conclusões de toda esta experiência”.
Resumimos alguns dos pontos explorados no documento:
- A app não funcionava e as pessoas perceberam-no. Muita gente constatou que o seu telemóvel não lançou a devida notificação quando alguém que sabiam ter estado em contacto introduziu o seu código. Mesmo assim, manteve-se uma linha de confiança na eficácia total da app no discurso oficial, sem qualquer admissão de falhas técnicas.
- A medida do Governo de tornar a app obrigatória teve um efeito claríssimo no declínio da adoção da aplicação. No entanto, os proponentes da app insistiram em culpar os médicos, uma classe profissional profundamente agastada pela crise pandémica e, concluímos, sem qualquer responsabilidade no fracasso da aplicação.
- Google e Apple substituíram-se aos Estados na definição da arquitetura de uma medida de saúde pública. Este é um precedente preocupante na medida que constitui uma efetiva privatização de uma parte importante dos esforços de combate à pandemia.
- Existiu uma falha de segurança grave nos dispositivos Android que permitia acesso indevido a dados pessoais dos utilizadores, que esteve ativa ao longo de quase todo o ciclo de vida da app. A Google tinha conhecimento dessa falha, meses antes da sua descoberta por parte de investigadores independentes. Não há nota de qualquer auditoria ou investigação por parte do Governo ou outra autoridade, e a CNPD havia alertado para o risco deste cenário antes até do lançamento da aplicação.
- A alteração legislativa destinada a facilitar algumas funcionalidades da aplicação veio tardíssimo, meses depois de relatos de desinstalações em massa, tendo-se perdido a oportunidade de fazer a diferença em tempo útil. No entanto, as culpas desse atraso foram apontadas à CNPD e não, como deveria, ao poder legislativo.
- Mesmo quando a app já estava moribunda, a passarem vários dias sem um único código introduzido na aplicação, os seus proponentes e o Governo insistiam na sua promoção junto dos meios de comunicação. Ainda hoje encontramos anúncios a incentivar à instalação da app nos transportes públicos.
- Também surgiram recentemente opiniões públicas por parte de investigadores e deputados que insistem na culpabilização da opinião pública e apresentam um cenário falso sobre o que realmente se passou, como desconstruímos no relatório.
- Os proponentes da app falharam na sua responsabilidade científica e democrática de divulgar as conclusões desta experiência, para que futuros esforços semelhantes possam ser melhor informados.
Ricardo Lafuente resume: “É fundamental debatermos o que se passou. A experiência Stayaway foi um fracasso total da abordagem tecno-deslumbrada que exalta as apps e as ‘soluções inovadoras’, desprezando as pessoas, a legislação e qualquer contributo por parte de outra área que não a técnica, como as ciências sociais”.
É urgente elevar o debate sobre o digital, compreendendo a forma como molda e afecta a nossa estrutura social e a nossa integridade mais íntima, para evitar ingenuidades que motivaram boa parte dos erros identificados em todo este processo, e que ainda alimentam análises irresponsavelmente superficiais por parte de quem tem obrigação de fazer melhor.
“Enquanto cidadãos comprometidos com uma existência democrática, exigimos mais do que o silêncio irresponsável de quem prometeu tudo e não tem nada para mostrar. Esta experiência falhou, e a fantasia tecno-deslumbrada que a alimentou não pode ter mais lugar na definição de políticas de saúde pública”, conclui o coordenador do relatório.