Na audição da D3 na Assembleia da República, no Grupo de Trabalho dos Metadados, tivemos oportunidade de defender que, embora a adopção de medidas que implicam a vigilância massiva sobre os metadados das telecomunicações dos cidadãos seja um tema político, a eventual Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade de novos regimes de conservação de metadados, à luz da jurisprudência conhecida do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Justiça da União Europeia, é uma questão puramente técnico-jurídica.
Nesse sentido, e indo directamente ao assunto:
A proposta
A proposta actual (proposta de alteração do PS e PSD de 2024-01-03, que difere substancialmente da que existia há apenas 48 horas), é de difícil leitura. À primeira vista, pode parecer um sistema de quick-freeze. Não cremos que seja esse o caso. A interpretação que fazemos do texto legislativo, no que respeita à conservação de dados de tráfego e localização, é a seguinte:
A lei, em si, não determina a conservação destes dados, como acontecia antes. Em vez disso, agora a substância do regime de conservação de metadados é delegada a uma formação especial do Supremo Tribunal de Justiça, a pedido do Ministério Público. Vejamos:
- É o Supremo que define o prazo de conservação e prorrogações de cada conservação.
- A lei também não define os critérios que devem ser seguidos pelo Supremo para determinar uma conservação dos dados na medida estritamente necessária.
- De igual forma, não se estipulam os concretos fundamentos legais que podem servir de base ao pedido.
Tudo isto é deixado ao Supremo, limitando-se a lei a fazer meras referências - aliás redundantes - a obrigações de proporcionalidade dessa conservação, e mantendo o escopo na investigação de criminalidade grave (que já vinha da lei anterior).
A partir do momento em que o pedido de conservação de dados é apresentado, os provedores de serviço de Internet (ISPs) são também notificados, e ficam obrigados a conservar preventivamente os dados pedidos. O prazo para a decisão do Supremo é de 72 horas. Contudo, não existe qualquer consequência para a sua violação. Os ISPs ficam obrigados a conservar até que haja decisão.
Em suma: Antes, a conservação de metadados resultava directamente da lei, e a autorização judicial era necessária para o acesso. Agora, a lei não determina uma conservação preventiva de metadados, mas prevê que esta possa existir mediante autorização do Supremo.
Mas que tipo de conservação?
A lei não define expressamente o tipo de conservação que o legislador tem em mente. Atendendo a que o art. 12.º da Lei do Cibercrime já permite o acesso a metadados dentro do processo penal, em relação a suspeitos concretos, esta proposta só faz sentido quando interpretada enquanto um meio de conservação ad-hoc, fora do processo penal, e portanto não incidindo sobre suspeitos concretos. Por outro lado, sabemos também que a conservação não pode ser geral e indiscriminada (i.e., sobre todos os cidadãos), algo expressamente proibido pela jurisprudência.
Se não é sobre toda a gente, mas também não é sobre suspeitos concretos, a conservação afinal incide sobre quem? Esta era precisamente a pergunta a que o legislador deveria ter respondido, e cuja resposta não se afigurava fácil. A jurisprudência do TJUE dá algumas pistas que poderiam ter sido utilizadas, como uma delimitação geográfica ou delimitação a determinados grupos de pessoas. O silêncio da lei sobre a questão, juridicamente, é ensurdecedor. O legislador limita-se a relegar para o Supremo tais decisões. Pensou o legislador, porventura, que se não tomasse opções expressas, estas também não poderiam ser alvo de censura do Tribunal Constitucional. Um prazo não definido não pode ser considerado demasiado longo, uma delimitação do escopo da conservação que não existe não pode ser considerada excessiva, etc.
Era bom que tudo fosse assim tão fácil, não era?
Existem outros problemas nesta proposta, mas no final do dia, a questão-chave é:
Pode uma lei que limita direitos, liberdades e garantias delegar nos tribunais a delimitação e densificação de tal restrição?
A resposta curta: Claro que não.
A resposta menos curta: Restrições a direitos, liberdades e garantias têm de estar muito claramente delimitadas por lei da Assembleia da República, ou decreto-lei autorizado, sob pena de violação do princípio da reserva de lei. A lei restritiva tem de ser suficientemente densa na delimitação da restrição efectuada. A doutrina Constitucional geralmente trata este tema a propósito dos casos em que a lei consagra uma restrição sem a regular suficientemente, deixando tal papel a instrumentos infra-legais da Administração. Este é o caso típico de inconstitucionalidade por violação da reserva de lei. Nesse sentido, a título de exemplo, Vieira de Andrade:
«(…) a lei restritiva, em função da reserva de lei formal, tem de apresentar densidade suficiente, isto é, um certo grau de determinação do seu conteúdo, pelo menos no essencial, não sendo legítimo que deixe à Administração espaços significativos de regulação ou de decisão (…)»
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, José Carlos Vieira de Andrade, 3º Edição, pp 312-313
Se tais aspectos não podem ser deixados à Administração, menos ainda podem ser deixados a um órgão não legislativo. A falta de determinação de prazos e escopo da conservação é uma flagrante violação da reserva de lei da Assembleia da República. Sem que estes aspectos estejam suficientemente densificados na lei, não é possível determinar se a restrição cumpre o princípio da proporcionalidade, na vertente da proporcionalidade estrita (estrita medida, proibição do excesso). De igual forma, sem tal densificação, não é possível garantir que o núcleo essencial dos direitos fundamentais afectados é preservado.
De referir, por fim, que meras remissões para o princípio da proporcionalidade não representam qualquer densificação da delimitação dessa restrição, mas a sua completa ausência. Além de serem redundantes, pois apenas repetem o que já resulta do regime Constitucional (art. 18º n.º2).