Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Foi ontem publicada uma entrevista na Exame Informática em que Marinho e Pinto confirma que vai votar favoravelmente a reforma europeia do direito de autor.

Há alguns pontos da entrevista que merecem atenção.

Artigo 11 - “Jornais estão a perder leitores directos no papel porque as empresas americanas estão a facturar à custa desse trabalho. Essas empresas disponibilizam o acesso gratuito aos jornais”.

Quem disponibiliza o acesso gratuito aos seus conteúdos, são os próprios jornais. Quem define o modelo de negócio a adoptar no digital, são os próprios jornais. Há jornais que são gratuitos, sim, mas outros há cujo acesso é pago, e outros ainda que adoptam modelos alternativos. Ninguém obriga os jornais a adoptar este ou aquele modelo, tal como ninguém é obrigado a disponibilizar os seus conteúdos no Google - é muito fácil desactivar o acesso do Google. Como é óbvio, nenhum órgão de imprensa o faz, porque o Google desempenha um papel crucial ao levar os seus conteúdos ao público.
As alterações nos modelos de negócio do jornalismo na Internet e respectivas consequências são apenas imputáveis aos próprios jornais. Certamente não é por causa das empresas americanas que os jornais estão a perder leitores no papel, isso acontece porque o sector passou – e não era sem tempo – a investir no digital. Surgiram também órgãos de comunicação profissionais que são exclusivamente digitais.
No digital, as coisas funcionam de forma diferente. A informação deixa de ser escassa, o jornal deixa de ter o quase-exclusivo de comunicação de informação ao público. Pelo contrário, passa a ser o público a pesquisar a informação que pretende. Acontece que a Internet não tem um sistema de pesquisa “nativo”, toda a informação encontra-se descentralizada. O poder da Google nasce precisamente porque a empresa se consolidou como principal referência nesse serviço, o de levar a informação às pessoas. A Google não é a empresa gigante que é porque “parasita” os conteúdos dos outros, mas precisamente porque leva as pessoas a encontrarem a informação que procuram, ou seja, ajuda a ligar os meios de comunicação social e o seu público. O efeito é positivo para todas as partes, não se trata de um jogo de soma-zero. O que se comprova pelo facto de que se removermos a Google desta equação, todos ficam a perder, ou pela parte muito relevante do tráfego dos sites dos jornais - necessário para que estes vendam a sua publicidade - que vem do Google. Marinho e Pinto apelida isto de parasitismo.
Não faz sentido querer cobrar a uma das partes deste jogo uma taxa com consequências negativas para toda a sociedade, apenas porque se acha que essa parte tem uma facturação muito alta e é americana.

São as plataformas e não os utilizadores quem vai pagar.

Já todos conhecemos este argumento, principalmente do tempo da #PL118 (a última alteração à lei da cópia privada - Lei n.º 49/2015, de 5 de junho). Aqui o consumidor também não ia pagar, seriam os intermediários que iriam “absorver” a taxa e diminuir os seus lucros. Hoje, os valores cobrados aos cidadãos, através desta taxa, passaram de menos de 600 mil euros em 2015, para cerca de 15 milhões em 2017, e sempre que adquirimos um dispositivo sujeito a essa taxa, ela aparece bem discriminada. Quem paga são sempre os mesmos.

Art. 13 e Direito de Autor na Internet

Marinho e Pinto está impregnado de uma certa narrativa, vinda do lóbi dos detentores de direitos (não necessariamente os autores), que divide o mundo em duas partes: aqueles que defendem os direitos de autor, e os que acham que “pode ser tudo de borla”. Esta visão a preto e branco não tem qualquer correspondência com a realidade. Nem sequer os piratas alemães, que refere, são contra o direito de autor (o mesmo meio de comunicação social publica no mesmo dia uma entrevista à eurodeputada Julia Reda, a não perder por quem valorize opiniões informadas sobre este tema).
Há sim quem ache relevante estudos que são propositadamente omitidos pela Comissão Europeia quando não demonstram a narrativa pretendida, antes demonstram que os efeitos económicos da chamada pirataria são irrelevantes, fora casos muito específicos. Há quem entenda que isso é um dado relevante a ter em consideração antes de obrigar a Internet a instalar filtros de censura que visam proteger os criadores dos “milhões e milhões” que afinal não perdem. Ou estudos que dizem que quem mais pirateia é também quem mais dinheiro gasta em conteúdos legais. Sim, o mundo é um pouquinho mais complexo e estas questões não são simples. Mas há quem ganhe muito em pintá-las a preto e branco.

Quem ganha com esta reforma? Autores e jornalistas? Grandes tecnológicas americanas?

Analisando a questão de uma forma um pouco mais aprofundada, veremos que estas medidas dificilmente prejudicarão as grandes empresas tecnológicas americanas. Pelo contrário, apenas reforçarão os seus monopólios. Por exemplo, em relação aos filtros, o Google já tem a tecnologia de content-ID e encontra-se em posiçao de ser o único fornecedor de tal tecnologia. Pode oferecer esse serviço a outras empresas, conforme já oferece o Google Analytics, por exemplo, ou cobrar por esse serviço. Em consequência acabará por ter acesso às informações sobre todos os conteúdos que os utilizadores enviam para os outros sites, tal como hoje já tem informações sobre as visitas de todos os sites que usam o Google Analytics - a grande maioria. São precisamente as gigantes tecnológicas americanas quem tem os meios para responder a estas medidas. Por outro lado, são as PMEs e start-ups europeias que serão prejudicadas, porque não têm os mesmos recursos para cumprir a lei, ficando ainda mais dependentes das gigantes americanas.
Já no direito conexo para editores de imprensa, a experiência de Alemanha e Espanha demonstra que todos ficaram a perder - todos menos a Google.

Mas mesmo que a intenção fosse chegar apenas às gigantes tecnológicas americanas, na prática a lei está a ser construída de tal maneira e com uma definição tão alargada, que o próprio Presidente da Comissão JURI e principal impulsionador destas medidas diz que não sabe que plataformas estão abrangidas pela obrigação de filtragem de conteúdos, e que terá de ser o Tribunal de Justiça a interpretar a lei que ele está a escrever. Isto é o grau zero da política-legislativa. Curiosamente, trata-se do mesmo Eurodeputado que apoia a Google e Facebook na sua oposição ao Regulamento ePrivacy, que pode colocar em causa algumas das vitórias que os cidadãos tiveram com o Regulamento Geral de Protecção de Dados.
Plataformas como o GitHub, Wikipédia ou Wordpress serão também afectadas e já tomaram posições públicas.

Se o objectivo fosse mesmo regular as gigantes tecnológicas americanas, a melhor maneira de o fazer seria através de medidas anti-monopolistas no âmbito das leis da concorrência, não através do direito de autor.

Maiorias na Comissão JURI; Marinho e Pinto e o mundo.

A verdade é que a escassa maioria (por um voto) que se antevê na JURI só será possível porque Marinho e Pinto se junta aos conservadores, conservadores eurocépticos e extrema-direita. Fá-lo juntamente com o seu colega de grupo e vice-presidente da Comissão JURI, o eurodeputado francês Jean-Marie Cavada, que tem opiniões inacreditáveis tais como dizer que a Wikipédia é um monopólio americano que visa escapar aos pagamentos devidos aos autores ou considerar que os únicos conteúdos de qualidade são os tradicionais e que os novos conteúdos da Internet são apenas lixo. Fá-lo ainda perante apelos de muitos deputados do seu grupo, ALDE, e da própria juventude do partido, no sentido de não aprovarem esta reforma.

Por fim, Marinho e Pinto deixa acusações a quem se tem batido por esta reforma na EU e Parlamento e as suas ligações às multinacionais americanas como Google. Esquece-se que entre as organizações e comunidades que se têm pronunciado sobre este assunto estão as principais referências a nível de direitos digitais, conhecimento livre ou software livre. Estas organizações ainda são das poucas que fazem frente aos monopólios das tais gigantes americanas. É precisamente em algumas dessas comunidades que normalmente se podem encontram pessoas que, por exemplo, não usam o Google ou o Windows, por mera questão de princípio.
É preciso uma certa pontaria.

Respostas a críticas: zero

Mas o que mais se destaca em toda a entrevista é a ausência às críticas concretas que são repetidamente apontadas. Os filtros de upload são ou não capazes de filtrar apenas as utilizações ilegais e não as utilizações perfeitamente legais, como a paródia ou a citação? Devem ser as plataformas os novos juízes das liberdades, decidindo o que os utilizadores podem ou não publicar? Podem elas desempenhar esse papel com independência? Como é que uma obrigação de filtragem não é “monitorização geral” de conteúdos, proibida pelo TJUE? Como é que justifica uma taxa do link, tendo em consideração o seu resultado em Espanha e Alemanha? Que efeitos terá nas fake news uma taxa sobre links para conteúdos jornalísticos legítimos? Porque é que apenas investigadores devem poder fazer livremente prospecção de texto e dados, e não jornalistas, estudantes e cidadãos em geral? Porque é que vamos restringir a excepção para fins de ensino e abrir porta a uma nova taxa de cópia privada para fins de ensino?

A explicação chegou-nos hoje, ao que parece. É que Marinho e Pinto nem sequer se dignou a ler as cartas abertas sobre o tema, segundo afirmou ao Diário de Notícias.

Quando Marinho e Pinto olha para isto, vê apenas um dos lados. O outro não leu nem está interessado em ler.

por Eduardo Santos, Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais