Um dia vamos ter de falar e reflectir sobre a propaganda, a desinformação e a qualidade do jornalismo que tivemos neste tema. Mas não hoje. Por ora, urge combater os dois primeiros.
Todas as afirmações a que aqui se dá resposta foram publicadas por órgãos oficiais de instituições da União Europeia, por Eurodeputados ou por órgãos de comunicação social.
É verdade que os serviços e plataformas online (como o YouTube, o Twitter, o Facebook) não são responsabilizadas pelos conteúdos enviados pelos utilizadores? Aproveitam-se de um vazio legal?
Não, isso é absolutamente falso. Actualmente essas plataformas são responsabilizadas nos termos da Lei do Comércio Electrónico (Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro), com origem na Directiva europeia com a mesma designação (Directiva n.º 2000/31/CE). Em termos mais simples, o que a lei diz é que essas plataformas são responsabilizadas por esses conteúdos caso não os apaguem rapidamente quando saibam - ou lhes seja comunicada - que um conteúdo não está autorizado.
Não há qualquer vazio legal, é um regime que foi pensado especificamente para este fim.
Os autores não tinham a possibilidade de cobrar pela utilização das suas obras no Youtube?
Isto também é falso. Nos termos da lei, o Youtube (e qualquer plataforma) estava obrigado nos termos que vimos, a remover conteúdos cujos detentores de direitos sinalizassem como não autorizados. No entanto, o Youtube ia até para lá da letra da lei, e como opção, oferecia ainda a possibilidade de os detentores de direitos monetizarem os seus conteúdos enviados por utilizadores. Os detentores de direitos escolhiam então remover ou remunerar o conteúdo, sendo que a segunda opção constituía, por um lado, uma autorização do detentor de direitos para que a obra lá estivesse, e por outro, uma forma de remuneração ao mesmo detentor de direitos. O acordo do detentor de direitos era imprescindível, e este poderia sempre recusar e apagar o conteúdo não autorizado. É por esta razão que hoje em dia quase todas as músicas que aparecem no Youtube têm já indicações sobre os direitos de autor, e quase todos os detentores de direitos publicam as suas músicas directamente nos seus canais oficiais de Youtube.
Por exemplo, entre Outubro de 2017 a Setembro de 2018, o Youtube pagou mais de 1,8 mil milhões de dólares à indústria da música.
É verdade que as leis da "vida real" não se aplicam - ou não se aplicavam até agora - à Internet?
Não. Isso é um disparate jurídico. A Internet não é um lugar fora do alcance da lei. Quanto muito pode haver dificuldades práticas para fazer cumprir a lei (o que não se verifica neste caso em concreto), mas nunca por a lei não ser aplicável.
É verdade que a Directiva vai trazer uma uniformização das leis de direitos de autor nos vários Estados-membros?
Não, isso não é verdade. Aliás, tal afirmação é incompatível com o facto de que muitos detalhes importantes estão ainda por definir e vão ser definidos pelos Estados-membros na transposição da Directiva. O que é um snippet, quanto texto de uma notícia pode ser utilizado? O que são "os maiores esforços" que as plataformas terão que fazer para não serem responsabilizadas?
Cada Estado-Membro poderá chegar a respostas diferentes. Iremos então ter 28 (ou 27) transposições diferentes destas regras, que terão de ser todas implementadas, país a país, por qualquer empresa que queira estar presente no mercado europeu. Bem vindos ao "mercado único digital". É único mas no sentido de nunca se ter visto nada assim.
A directiva vai uniformizar as excepções de que os utilizadores beneficiam?
Não, isso é falso. Essa era uma de muitas pretensões que não conseguimos fazer valer, tendo sido essa possibilidade afastada pela Comissão Europeia logo nos estágios iniciais do processo legislativo. Existe sim uma provisão no artigo 17 que diz que as utilizações para citação, critica e análise e as utilizações para caricatura, paródia ou pastiche, realizadas por utilizadores, não devem ser abrangidas pelos filtros ou outras medidas que levem à indisponibilização destes conteúdos. O problema está na pergunta seguinte...
É verdade que a lei diz que as utilizações realizadas ao abrigo de excepções não devem resultar na sua indisponibilidade?
É. Mas também é verdade que os filtros são incapazes de distinguir essas utilizações, portanto o que a lei diz, na prática, torna-se inútil. Se o filtro reconhece um conteúdo protegido mas não sabe avaliar se a sua utilização é lícita, o conteúdo vai ser sempre removido. Não é por algo estar escrito na lei que se torna verdade ou passa a existir.
A nova directiva impõe filtros? Não foram já removidos?
A primeira "versão" da proposta tinha explicitamente escrito que se deviam usar "tecnologias efectivas de reconhecimento de conteúdos”, só que isso gerou muita polémica, pelo que a referência explícita foi suprimida do texto, para acalmar as hostes. No entanto, continua a impôr-se às plataformas obrigações que só podem ser cumpridas com recurso a filtros. Até o Governo português o disse, e o Governo alemão confirmou. Permitam-nos esta analogia: o patrão de uma multinacional diz ao um seu empregado, em Portugal: "Eu não te estou a obrigar a andar de avião, mas daqui a dois dias, dê por onde der, tens de estar na nossa sucursal de Luanda! Agora safa-te!". É mais ou menos isto.
Ou as plataformas pré-licenciam tudo o que os utilizadores podem publicar, ou na prática vêem-se obrigadas a implementar filtros de censura que controlam previamente aquilo que um utilizador pode ou não publicar. A primeira opção é naturalmente impossível de cumprir. Se não houver esse licenciamento, as plataformas têm ainda assim de demonstrar que fizeram os todos esforços no sentido de o conseguir obter.
Depois há algumas medidas de mitigação como as que falámos anteriormente, que prevêem que os filtros devem respeitar as excepções, e que ignoram o facto de que as tecnologias de reconhecimento de conteúdos, como o nome indica, reconhecem conteúdos, mas não conseguem perceber o contexto da sua utilização (se é ou não ao abrigo de uma excepção), pelo que acabam por remover conteúdos indevidos. Consta, por exemplo, que as máquinas não têm sentido de humor que lhes permita reconhecer uma paródia. Infelizmente os políticos acreditam que sim, que o Algoritmo é uma nova divindade, que tudo pode e tudo consegue.
Os memes estão a salvo? Os filtros são capazes de distinguir utilizações lícitas de utilizações ilícitas?
Não, não estão a salvo - como os académicos já disseram por diversas vezes, até mesmo depois da aprovação da Directiva. Os memes levantam dois problemas. O primeiro é exactamente o mesmo problema que todas as utilizações lícitas enfrentam e que temos falado: independentemente do que a lei possa dizer, a verdade os filtros automáticos não conseguem reconhecer ou analisar a licitude da utilização. Por exemplo, uma paródia musical utiliza exactamente a mesma composição musical do original, pelo que vai bater no filtro e ser censurada. Actualmente bastam meros segundos para os conteúdos serem identificados e removidos, sem qualquer consideração pelo facto de poderem constituir utilizações legítimas.
Que os filtros não são capazes de distinguir utilizações lícitas de utilizações ilícitas, é algo consensual. A lei até pode ser a melhor lei do mundo em excepções de utilização legítima de conteúdos, mas se os mecanismos de filtragem não são capazes de reconhecer essas excepções, os cidadãos não conseguem usufruir plenamente desses seus direitos.
O outro problema dos memes está na pergunta seguinte.
A paródia é legal em Portugal?
Esta é complicada, e a pergunta precisa de algum refinamento: É lícito usar uma obra sujeita por direito de autor quando o fazemos no âmbito de uma paródia? Patrícia Akester, especialista em Direito Intelectual, aqui citada pelo Público, diz o seguinte: "Grande parte do público acha que a paródia é permitida, mas não é. Se eu fizer uma paródia de alguma obra em Portugal, estou a infringir em obra alheia”. Não concordamos com esta posição, mas ela é defensável. Outros juristas baseiam-se em princípios mais gerais, na falta de normas explícitas, para defender que a paródia é permitida, e nós tendemos a concordar com essa posição. Infelizmente não há qualquer forma de garantir que os Tribunais concordariam connosco.
O que é facto é o seguinte: Portugal é dos pouquíssimos países da Europa que não transpôs a excepção da paródia. Reina, por isso, a confusão.
Resta ainda mais uma dificuldade, e esta de uma certa subtileza. É que uma coisa é parodiar uma obra, outra coisa é utilizar uma obra como meio para parodiar outra coisa qualquer. Parece um mero pormenor, não é?
Lembram-se do Contra-Informação? O Avô Cantigas (i.e., alguém por ele) processou a RTP porque o programa usou a sua música numa paródia, sem autorização. O caso chegou ao Tribunal da Relação de Lisboa, que em Acórdão disse o seguinte: «não sufragamos o entendimento seguido na sentença impugnada de que a referida alteração da obra “As cantigas do avô cantigas” é lícita pois foi utilizada numa obra nova que vem parodiar uma certa situação político-social (...). Todos são livres de utilizar tema, assunto ou ideia de obra alheia e com base neles criar uma obra nova, quer estejamos a falar de paródias quer de qualquer outra forma de expressão criativa. No entanto, situação diferente é a utilização de obra alheia em obra própria, mesmo que para parodiar uma certa situação social, política ou outra. Nestes casos, estamos perante uma utilização de obra alheia para a criação de uma paródia, esta original mas onde se inclui uma obra alheia. Em boa verdade, é o que sucede no caso em apreço, uma vez que a obra “As cantigas do avô cantigas” é utilizada, com modificações, numa obra nova que pretende parodiar determinada situação (…)».
A RTP perdeu.
As obras utilizadas nos memes não são o objecto da paródia, os memes são utilizados para parodiar outras coisas.
E nem todos os memes são paródia de algo.
As pequenas empresas e startups estão protegidas da responsabilização dos conteúdos enviados pelos utilizadores?
As plataformas que facturem menos de 10 milhões por ano e tiverem menos de 3 anos, têm "apenas" de demonstrar que realizaram todos os esforços no sentido de obter uma autorização para todos os conteúdos enviados pelos seus utilizadores. Se ainda assim tiverem também mais de 5 milhões de utilizadores por mês, devem ainda de arranjar forma de impedir novas publicações de todos os conteúdos que tenham sido sinalizados pelos detentores de direitos.
Depois dos 3 anos, aplicam-se as regras "normais".
Infelizmente as normas mais robustas de protecção de PMEs e startups ficaram pelo caminho, restando apenas este regime pouco interessante e muito limitado no tempo. Após estes 3 anos, quem ambicione, por exemplo, competir com a Google e o seu Youtube, terá de arranjar um sistema semelhante ao Content-ID, da Google, que custou a módica quantia de 100 milhões de dólares a ser desenvolvido.
A Directiva vai impedir a partilha de links de notícias? A utilização privada não é permitida?
Dizem-nos que o artigo 11º (agora 15º) apenas afecta as plataformas, não os utilizadores. Não é preciso ser um génio para desmontar o argumento: Se às plataformas for restringida a possibilidade de partilhar links, ou se estas não tiverem a devida licença, quem sofre são também os utilizadores, que deixam de lá poder partilhar e aceder a esses conteúdos. O artigo salvaguarda a "utilização privada", o que em si é um contrassenso insanável: Não há utilização privada na partilha de um link, ou é privada, ou é partilhada com outros. Porventura referir-se-à a lei apenas à partilha por mensagem privada? Assim sendo, claro que os utilizadores são afectados. Resta saber de que forma.
A partilha de link "puros", hiperligações, está salvaguardada. O problema é que nem tudo a que chamamos "link" entra nesse conceito. Por exemplo, no Facebook os "links" são também acompanhados do título, e por vezes uma imagem e de algumas palavras do texto de página de destino. A transposição terá de criar regras objectivas para definir que tipo de links com snippet obrigam ao pagamento de licenças.
O artigo 11º (agora 15º), abrange apenas as grandes plataformas?
Não, nada no artigo o restringe apenas a grandes plataformas.
A Directiva garante a sustentabilidade do sector dos media?
Não, claro que não. Isso foi uma frase da propaganda das instituições da U.E., que qualquer pessoa deveria conseguir perceber que era mero marketing.
O que é verdadeiramente assinalável aqui é ter sido a própria imprensa a reproduzir acriticamente estas palavras. Se tiverem razão, então um dos grandes problemas do nosso século fica resolvido, já que a sustentabilidade do sector está a partir de agora garantida.
Mas esta medida já foi tentada em Espanha e Alemanha, com idênticos resultados: nenhuns.
É verdade que foi a Google que deu origem a todos os protestos que decorreram nas últimas semanas?
Não. A Google apenas entrou em acção já bastante tarde, enviando aos Youtubers um email sobre o que se estava a passar no Parlamento Europeu. Antes disso, há muito que o assunto era já acompanhado com entusiasmo pelo público. Em 2016, a consulta pública que a Comissão Europeia realizou sobre o tema bateu o recorde de participação dos cidadãos para aquele tipo de consulta pública. Além disso, as organizações que combaterem esta Directiva desde o primeiro minuto são exactamente as mesmas que combatem os grandes monopólios da Internet, como o da Google, por exemplo apoiando o R.G.P.D. e a ePrivacy.
A Google dominou o lobbying em Bruxelas?
Não, muito longe disso. Do top 10 de reuniões de lobistas com a Comissão Europeia, a Google, em 7º, era a única que não era lobista dos detentores de direitos. Do top 20, havia apenas mais uma associação com alguma ligação à Google, e em 12º a única entidade representante dos consumidores. Vejam então quem é que dominou o lobbying neste dossier...
Ler o relatório da Corporate Europe Observatory é exercício de difícil digestão sobre influência que os detentores de direitos - quem efectivamente beneficia economicamente da medida - tiveram sobre legisladores.
Este texto vai sendo actualizado à medida que a desinformação se propaga.