Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




A “disputa” entre o Presidente Trump e o Twitter tem feito correr muita tinta, e não é para menos. Contudo, nem sempre é dado o melhor enquadramento à questão: não é possível falar com propriedade do caso Twitter e Trump sem falar da Section 230, da Directiva do Comércio Electrónico (e-Commerce) e do Digital Services Act (DSA), ou seja, os regimes legais norte-americano e europeu relativos à responsabilização das plataformas.

Esse é o debate que falta ainda fazer. O tema é bastante complexo - quem tiver todas as certezas do mundo sobre o assunto, muito provavelmente nem sequer o entendeu. Este artigo é apenas uma introdução, pretende oferecer o enquadramento necessário para se pensar o tema. Não poderá ir ao detalhe destas legislações e respectiva jurisrudência, e muito menos às propostas em cima da mesa para o DSA. Esperamos que seja útil para melhorar a qualidade do debate público que irá necessariamente decorrer ao longo dos próximos meses e anos.


Por esta altura já todos ouvimos falar da Section 230. Trata-se da parte mais relevante do regime legal norte-americano, que está a ser debatida e a ser posta em causa tanto pelo Presidente Trump como por Joe Biden, o presumível candidato democrata à Casa-Branca. Na Europa, o Art. 14º da Directiva do Comércio Electrónico (e-Commerce) é a nossa Section 230, mas também aqui há mudanças em vista. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou em Fevereiro a estratégia da Comissão para o Futuro Digital da Europa. Uma das prioridades anunciadas foi o Digital Services Act, uma iniciativa legislativa que irá modificar as regras vigentes da e-Commerce no que respeita ao o regime legal de responsabilização das plataformas.

A imprensa em Portugal (com uma excepção) não acompanhou o assunto do Digital Services Act. Já assistimos este filme antes: a reforma europeia do direito de autor, que teria implicações significativas precisamente nos princípios que estiveram na criação da Section 230 e da e-Commerce, andou a ser discutida lá fora e ignorada cá dentro durante anos. Na D3 apontámos essa ligação ainda em 2017, na nossa primeira publicação sobre o assunto, ou assim que foi conhecida a posição do Governo português. Não que haja grande mérito nisso, já que a ligação é óbvia, mas durante meses e anos falámos no assunto. Mas era chato…
Quando um famoso youtuber, repentinamente, atingiu 500 mil visualizações em algumas horas com um vídeo sobre um dos aspectos da reforma, o assunto abriu telejornais. Um youtuber não é um jornalista, e o vídeo reflectia a expectável falta de preparação da pessoa em causa para falar de um tema complexo. Por reacção, o tema ganhou então destaque na imprensa - mas o tema tinha passado a ser o youtuber, e não o que estava realmente em causa. É que para discutir o que estava realmente em causa, era necessário tempo e estudo prévio, era necessário compreender o problema, como fizeram várias associações e organizações que acompanharam os vários desenvolvimentos ao longo de anos. Poucos foram os órgãos de comunicação social que o fizeram. Quando foi preciso falar de repente sobre o tema, reinou então a desinformação, pois a impreparação e a imediatez do assunto obrigaram à reprodução acrítica de posições da Comissão Europeia (que era fortemente contestada por académicos e sociedade civil em geral) e das indústrias de conteúdos (do qual a imprensa também faz parte). Vimos serem publicados os maiores disparates factuais e jurídicos, tanto pela imprensa, como por cronistas e por representantes políticos. Até fizemos uma colecção deles.

Ora, o Digital Services Act e a Section 230 é a reforma do Direito de Autor em esteróides, tanto em popularidade quanto em importância e em complexidade. E, principalmente, é a continuação natural do debate lá iniciado: Devem as plataformas ser responsabilizadas pelos conteúdos que são enviados pelos seus utilizadores?

Oh não, a Internet vai acabar outra vez!

Dependendo da idade do leitor, lembrar-se-á de uma, duas, três ou mais situações em que, ao longo dos anos, já ouviu dizer que a Internet como a conhecemos estaria em risco. Para quem apenas acompanha de longe os acontecimentos, é natural uma certa reacção de desconfiança, um pouco como na história do Pedro e do Lobo, em que tantas vezes o Pedro gritou “Lobo!”, que quando o Lobo realmente veio, todos pensaram ser mentira. No entanto, tal é uma visão simplista. De facto, sempre que surgem iniciativas legislativas, nos EUA ou na Europa, que colocam em causa a forma de funcionamento da Internet “tal como a conhecemos”, é comum recorrer-se a este tipo de slogans. Certamente que com maior propriedade nuns casos e menos noutros, e com efeitos mais restritos ou mais generalizados em cada caso, diríamos que de forma geral se tem justificado a sua utilização, para reflectir as preocupações com o impacto que leis pouco ponderadas poderiam ter na Internet. Essas campanhas foram absolutamente fulcrais para parar iniciativas legislativas absurdas. Outras batalhas foram perdidas (como a neutralidade da Internet nos EUA) para já, mas a guerra continua. E noutros casos ainda, as campanhas e ampla participação pública foram absolutamente cruciais para melhorar a legislação e pelo menos controlar os danos de determinadas iniciativas legislativas. Nestes últimos casos, as mentes mais simplórias e limitadas dirão portanto que afinal era tudo mentira, que como o resultado final da iniciativa legislativa acabou por não ser tão mau quanto poderia, não tínhamos razão quando apontámos o dedo. Um pouco como aqueles que, perante o sucesso das medidas de confinamento para parar os números de crescimento exponencial dos casos da COVID-19, conseguem a proeza intelectual de afirmar que afinal eram medidas desnecessárias. Falham, claro, a causalidade. No casos destas leis, foi precisamente o nosso apontar de dedo e as campanhas públicas que levaram ao melhoramento da legislação, o que por si é já uma vitória.

De qualquer forma, provavelmente nenhuma outra situação terá tido tanta legitimidade para usar este tipo de slogans como o actual debate acerca da Section 230 - e da revisão da e-Commerce pelo Digital Services Act, actualmente a ser preparada na União Europeia.

É que o regime legal proporcionado por esta legislação foi precisamente o que permitiu que a Internet se tenha tornado naquilo que todos conhecemos.

Section 230 - “As 26 palavras que criaram a Internet”

Lançado no ano passado, “The Twenty-Six Words That Created the Internet” é um livro de Jeff Kosseff que nestes dias saltou para o n.º 1 dos livros mais vendidos na Amazon, na sua categoria. As 26 palavras são precisamente a Section 230, e o título escolhido pelo autor é demonstrativo da importância que este atribui a essa norma. Mas o que diz exactamente a Section 230?

No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider.”

No número 2 acrescenta-se ainda:

No provider or user of aninteractive computer shall be held liable on account of—
(A) any action voluntarily taken in good faith to restrict access to or availability of material that the provider or user considers to be obscene, lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing, or otherwise objectionable, whether or not such material is constitutionally protected; (…)

(Consultar texto completo)

Directiva do Comércio Eletrónico [e-Commerce]

Já a e-Commerce tem uma norma de natureza similar para o ordenamento jurídico da União Europeia, ainda que com importantes diferenças.

Artigo 14.º
Armazenagem em servidor
1. Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista no armazenamento de informações prestadas por um destinatário do serviço, os Estados-Membros velarão por que a responsabilidade do prestador do serviço não possa ser invocada no que respeita à informação armazenada a pedido de um destinatário do serviço, desde que:
a) O prestador não tenha conhecimento efectivo da actividade ou informação ilegal e, no que se refere a uma acção de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciam a actividade ou informação ilegal, ou
b) O prestador, a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, actue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações.

Simplificando, estas normas prevêm fortes limitações à responsabilização de intermediários pelos conteúdos que são colocados pelos seus utilizadores (fotografias, vídeos, comentários, etc.). Elas não foram pensadas especificamente para as plataformas que hoje conhecemos e que não existiam na altura; foram pensadas a um nível de abstracção superior, sendo aplicáveis a quaisquer provedores de serviços de Internet que alojem conteúdos de utilizadores, mas aplicam-se plenamente às plataformas actuais como Twitter, Facebook ou Reddit.

Afinal, devem ou não as plataformas ser responsabilizadas pelos conteúdos que os seus utilizadores nelas publicam? Se sim, em que termos?

É esta a grande questão em cima da mesa.

Contudo, para conseguir ter opinião formada sobre a solução actual, é preciso compreender de onde ela veio, isto é, por que razão se limita afinal a responsabilização das plataformas.

Corria o ano de 1996 quando foi aprovado no Congresso dos EUA o “Communications Decency Act”, do qual faz parte a Section 230, e que é parte integrante da legislação norte-americana sobre telecomunicações. Como o nome bem indica (“decência das comunicações”), o objectivo desta legislação era o de impedir a disseminação de “indecências” e obscenidades na Internet.

Para tal poder acontecer o legislador sabia que era necessário reunir duas condições. A primeira seria permitir que as plataformas (i.e., qualquer prestador de serviço) pudessem exercer moderação sobre os conteúdos enviados pelos utilizadores que considerassem “obscenos, lascivos, sujos, excessivamente violentos, assediantes ou de qualquer outra forma censuráveis” sem que com isso fossem responsabilizadas por violar a liberdade de expressão dos seus utilizadores.

A segunda condição implicava impedir que a plataforma, pelo mero facto de realizar moderação dos conteúdos enviados pelos utilizadores, pudesse ser considerada como uma editora (publisher) (no sentido tradicional do termo), dos conteúdos dos seus utilizadores. Este segundo aspecto foi uma reacção natural a anteriores decisões de tribunais norte-americanos que na altura entendiam que quando uma plataforma moderava conteúdos de utilizadores, actuava como um se fosse um editor de um jornal, que selecciona ele próprio os textos que saem no jornal, pelo que também ela assumiria a responsabilidade por tudo quanto fosse publicado na plataforma. Por outras palavras, o mero acto de moderar conteúdos tornava as plataformas responsáveis por todos os conteúdos publicados pelos utilizadores, mesmo por aqueles de que as plataformas não tivessem conhecimento directo. Pelo contrário, não moderar conteúdos significava não ter poder editorial sobre os conteúdos de terceiros, logo, não poder ser responsabilizado enquanto editor desse conteúdo. Perante tal dilema, entre essas duas opções extremas, obviamente que as empresas escolhiam não moderar minimamente os conteúdos que os utilizadores colocavam. Dessa forma, proliferavam pela Internet os “conteúdos indecentes”.

A Section 230 veio então fornecer a base legal para que as empresas tivessem a liberdade de definir elas próprias que conteúdos aceitariam nas suas plataformas, sem medo de ser processadas em larga escala pelo mero facto de moderarem os conteúdos enviados por utilizadores. O legislador pretendia incentivar a que as empresas implementassem políticas básicas de moderação de conteúdos, porventura mais “amigos da família”, e que permitissem banir pelo menos os conteúdos mais extremos. Na altura, o Community Decency Act teve bastante contestação e algumas normas foram mesmo declaradas inconstitucionais por restringirem a liberdade de expressão; contudo, esta solução legal prevista na Section 230 não levantou então qualquer celeuma e continua a vigorar até hoje. Ironicamente, portanto, a norma que garante a liberdade de expressão na Internet veio dentro de um pacote legislativo que a pretendia censurar. Ao mesmo tempo, pretendeu-se sem dúvida incentivar-se o crescimento de novas empresas tecnológicas norte-americanas com bastante potencial que estavam a despontar na altura, e que tinham como modelo fornecer aos utilizadores um espaço para que estes se expressassem e publicassem os seus próprios conteúdos.

Quatro anos volvidos, no ano 2000, foi aprovada na Europa a Directiva do Comércio Electrónico, com uma norma parecida, que vimos acima. A visão europeia tem tradicionalmente diferenças importantes nestas matérias, em relação à visão norte-americana. Os EUA atribuem um valor quase absoluto à liberdade de expressão, com base na famosa 1º emenda da Constituição norte-americana proíbe o Congresso de passar leis que, entre outras coisas, restrinjam a liberdade de expressão (ainda assim, existem matérias às quais foi excluída a possibilidade de aplicação da Section 230).

A visão europeia é bastante mais equilibrada, não conferindo à liberdade de expressão um carácter tão prevalecente. Prefere-se um maior equilíbrio entre os vários direitos fundamentais que possam estar em jogo, admitindo-se restrições proporcionais desses direitos apenas quando estejam também em causa outros direitos fundamentais. Esta diferença é notória quando verificamos que a norma europeia condiciona a limitação da responsabilidade do prestador de serviços às situações em que este não tenha conhecimento da ilicitude. Por outras palavras, sempre que o prestador de serviços tenha conhecimento ou se lhe for comunicada a existência de determinado conteúdo ilícito nos seus serviços, este tem a obrigação de o remover ou de impedir o acesso de forma expedita. Não o fazendo, assumirá a responsabilidade por esse conteúdo. Assim, falar de uma alegada “imunidade” das plataformas, em contexto europeu, é falacioso. É preferível a utilização do termo “limitação de responsabilidade”.

Apesar de uma maior ponderação sobre todos os interesses em jogo, a e-Commerce e a jurisprudência do TJUE sobre a matéria afirmam não existir um dever geral de vigilância das plataformas sobre o conteúdo enviado pelos utilizadores.

Vantagens

A afirmação de que a Section 230 permitiu a criação da Internet tal como a conhecemos não é uma hipérbole. De facto, se consultarmos por exemplo o top 10 dos sites mais visitados em Portugal, verificamos que 8 dependem de conteúdos dos utilizadores.

A limitação da responsabilidade das plataformas e dos prestadores de serviços em geral sobre os conteúdos dos seus utilizadores permitiu o surgimento de coisas tão distintas como os blogues pessoais, as redes sociais em que nos exprimimos, a Wikipédia - o maior projecto de partilha de conhecimento da história da humanidade, aplicações de reviews de restaurantes, o Youtube - que é um mundo em si mesmo, o Wordpress, o Git… entre muitos, muitos outros, sem os quais já não imaginamos o nosso mundo.

Todos estes serviços e plataformas ajudaram a dar voz a quem nunca a teve. Ajudaram à democratização da participação cívica, do acesso ao conhecimento e da produção de conteúdos. Se estas normas não existissem e as empresas que proporcionam estes espaços pudessem ser responsabilizadas por todo e qualquer conteúdo que é enviado por qualquer pessoa para os seus servidores, a Internet não seria um espaço tão livre. Seria um espaço mais parecido à televisão, rádios e jornais, em que o detentor da infraestrutura responde por tudo o que publica, logo, também tem de controlar tudo o que é publicado. Todos os sites que conhecemos teriam de funcionar como os sites de jornais - mesmo que aceitassem comentários do público, estes teriam de ser todos previamente validados, analisados e aprovados previamente pela própria plataforma.

Pense-se no que seria uma rede social que funcionasse desse modo. Muitos movimentos cívicos, sociais e políticos jamais teriam acontecido. A Primavera Árabe não teria acontecido. O #MeToo não teria acontecido pois as empresas temeriam ser responsabilizadas por difamação nas suas plataformas, ainda para mais sendo os denunciados pessoas famosas e com muito poder. Os protestos que neste momento decorrem um pouco por todos os EUA sobre justiça racial não teriam a preciosa ajuda e impulso da tecnologia que tem divulgado por todo o mundo os registos em vídeo dos abusos cometidos. Além disso, os comentários de pendor político mais acentuado nas redes sociais, em questões mais controversas, provavelmente não seriam permitidos, por uma questão de salvaguarda das próprias plataformas. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos.

Problemas

No entanto, nem tudo é perfeito. As mesmas normas que nos deram toda esta liberdade, também se revelam problemáticas em certas situações. A relativa imunidade da Section 230, principalmente, tem dificultado o combate ao discurso de ódio, facilita a difamação, o assédio e o stalking, a “pornografia de vingança”, e até a disseminação de conteúdos terroristas. Algumas matérias, como o discurso de ódio, reflectem diferentes tradições e posições sobre que conteúdos devem ser permitidos pelo Estado, ou seja quais os limites à liberdade de expressão que a lei deve estipular. Mas outros efeitos são reais danos colaterais desta opção legislativa.

Para mais, muitos destes problemas afectam desproporcionalmente grupos mais vulneráveis e minorias. Focando-se exclusivamente nos problemas que directamente os afectam, vítimas e activistas têm apontado o dedo à Section 230, que ultimamente ganhou assim novos críticos. Tecnicamente, não se pode dizer que estejam errados. Contudo, ao focarem-se apenas no problema concreto que querem ver resolvido, perdem a perspectiva geral do problema da regulação da Internet e passam ao lado do real debate. Frequentemente são as próprias minorias que mais beneficiam dos efeitos da Section 230 e da e-Commerce para conseguirem fazer ouvir a sua voz no espaço público quem aponta o dedo a essa legislação.

Já na União Europeia, a solução preconizada pela e-Commerce sofre também bastante desgaste e está constantemente a ser colocada em causa, com França a liderar os esforços nesse sentido. Exige-se que as plataformas policiem o seu conteúdo, contra o princípio geral ainda vigente de ausência de obrigações de vigilância geral sobre os conteúdos. Vemos iniciativas legislativas que visam a remoção de conteúdos terroristas em apenas 1 hora; que preconizam a utilização de filtros de upload automáticos para detecção de conteúdos onerados por direito de autor; entre outras obrigações que em comum têm o facto de estarem apenas ao alcance dos grandes players — norte-americanos — da Internet. Ironicamente, as brilhantes ideias europeias apresentadas como combate às plataformas norte-americanas estão apenas a consolidar e a solidificar a posição dessas multinacionais, e a dificultar a vida a todos os outros, incluindo as empresas europeias, impedindo que surjam novos “Twitters” e “Facebooks”.

Não haja dúvidas, as críticas têm razão de ser, os problemas são sérios e reais. Além disso, as plataformas não têm estado à altura da responsabilidade que necessariamente têm de ter na sociedade, dado o papel incontornável que desempenham na vida da grande maioria dos cidadãos nos dias de hoje. As políticas de moderação falham, e falham bastante. Mas não deixa de ser verdade que muitas vezes as plataformas são meros peões no meio de jogos políticos, presas por agir e presas por não agir. Os governos, por seu lado, não ajudam, frequentemente exigindo uma determinada política de moderação e o seu contrário; exigindo o cumprimento de legislações nacionais com base num argumento de soberania de Estado, mas sem responder à questão de como lidar com legislações incompatíveis entre si e legislações de Estados autoritários; ou fingindo que é tecnologicamente possível implementar políticas de moderação que apenas na cabeça do legislador e no papel da lei podem parecer fazem sentido, mas que presumem uma capacidade tecnológica fantasiosa.

Pistas para o futuro

Volvidos mais de 20 anos, a limitação de responsabilidade das plataformas ainda faz sentido? Queremos que as plataformas respondam pelos seus conteúdos? Haverá um meio caminho?

Voltando ao início: o tema é complexo e não existem respostas fáceis. Qualquer um dos posicionamentos possíveis de adoptar encontra sérios problemas pela frente. Contudo, deixo por fim algumas considerações finais para alimentar o debate e ajudar a pensar o futuro, sendo certo que muitos ângulos ficarão ainda por abordar.

Antes de mais, a solução europeia, preconizada pela e-Commerce, não é a Section 230. Muitos dos argumentos que são trocados por estes dias no debate sobre a Section 230 nos EUA não são directamente transponíveis para o debate Europeu. O nosso regime é bastante mais equilibrado, e já permite a responsabilização das plataformas em termos bastante razoáveis: quando lhes é comunicado, ou apagam ou respondem por isso.

Os danos colaterais apontados principalmente à Section 230 não são nada desprezíveis, os problemas que colocam são perfeitamente legítimos, e têm vítimas reais. No entanto, a relação aqui não será causal. A Section 230 pode facilitar a ocorrência de determinados comportamentos indesejáveis, mas não os causa. A diferença é relevante. Tudo devidamente ponderado, penso que os efeitos da limitação de responsabilidades das plataformas tem torna-a extremamente vantajosa na sua generalidade, beneficiando toda a sociedade. No entanto, é também preciso reconhecer os problemas marginais que está a causar, e saber dar-lhes uma resposta.

O regime de responsabilização das plataformas em vigor, apesar desses aspectos menos positivos, é também um sistema simples e eficaz. É fácil de perceber e oferece segurança jurídica. As experiências alternativas que visam colmatar as falhas do sistema são por norma bastante mais complicadas e, por muito boas intenções que tenham, na prática acabam por não correr bem (ler o fio completo), não resolver os problemas que visavam responder, e ainda criar uma série de novos e mais graves problemas. Tal como proibir conteúdos sobre sexo não evita a prostituição (referência ao link anterior), banir contas de Twitter de terroristas também não impede que estes comuniquem entre si, apenas os empurra para canais mais obscuros onde será mais difícil serem detectados e investigados. E será a intenção de proteger adultos de eventuais vídeos terroristas na Internet razão suficiente para justificar a utilização de ferramentas automáticas que apagam de igual forma provas de atrocidades e atentados contra os direitos humanos? Justifica-se que o legislador europeu tenha aprovado legislação que na prática obriga as plataformas a usarem filtros de upload para detectarem conteúdos sujeitos a direito de autor, sob pena de serem responsabilizadas por conteúdos enviados por utilizadores, quando o legislador sabia perfeitamente que os filtros são incapazes de reconhecer utilizações perfeitamente legítimas, e os conteúdos ilícitos já podiam ser removidos por simples notificação ao prestador de serviço?

Duas coisas parecem-me certas em toda esta história.
Em primeiro lugar, apontar o dedo ao regime de limitação das plataformas parece ser uma atitude precipitada, e quem o faz frequentemente não alcança plenamente o impacto do que propõe.
Em segundo lugar, as alternativas ou restrições que têm sido apresentadas ao este regime parecem ter como consequências incontornáveis excessos nos bloqueios de conteúdos e grandes restrições à liberdade de expressão, incompatíveis com a Internet aberta que hoje conhecemos e aversas a conteúdos gerados por utilizadores. Porque que quereríamos agora transformar a Internet numa televisão ou numa rádio? Isso seria matá-la.

Talvez a limitação de responsabilidade das plataformas seja o pior regime de governação de plataformas, com excepção de todos os outros.

Outros caminhos

Isto não quer dizer que os problemas apontados não necessitem de resposta urgente. Quer apenas dizer que acabar com a limitação de responsabilidade das plataformas é uma resposta errada. Para poder pensar o futuro e chegar a respostas mais certas, é em primeiro lugar preciso conhecer o passado e tentar perceber o presente. Foi esse o objectivo deste artigo, que já vai demasiado longo parar tratar também do futuro.

Acabar com o regime de limitação de responsabilidade das plataformas é uma falsa questão, pois é uma medida que não é adequada a resolver os problemas que se pretende resolver. Quem quiser realmente discutir o futuro da regulação das plataformas — e da Internet — terá de encontrar coragem para enfrentar os muitos elefantes em cima da mesa. A construção de muros por parte das plataformas; a sua centralização — funcionam em autêntico monopólio, um modelo exactamente oposto ao modelo descentralizado original da Internet; os modelos de negócio baseados na vigilância massificada sobre os utilizadores e na extracção de dados pessoais, sem respeito pela privacidade dos cidadãos; a falta de transparência no modo de funcionamento das plataformas; a falta de alternativas a interoperabilidade que permitam às pessoas uma maior liberdade de escolhe de serviços e controlar os seus dados.

Para quem tiver interesse em conhecer as propostas alternativas e bastante mais eficazes para o futuro, recomenda-se a leitura do Position Paper da EDRi.

Esta semana, a União Europeia começa a consulta pública do Digital Services Act. Será uma boa oportunidade para conhecer mais posições e começar a espalhar as peças - o jogo ainda vai durar uns bons anos.

 

Eduardo Santos
Presidente da D3